Diversos oficiais ligavam para o Palácio de La Moneda sitiado, e ofertavam ao presidente Salvador Allende um avião para que saísse do país junto com sua família. O golpe sangrento se iniciara na manhã daquele 11 de setembro de 1973. Os militares, sob orientação dos EUA e por eles apoiados, com inteligência, infra-estrutura, destroyers, aviões e agentes da CIA, deram o golpe, e mostraram-se dispostos a tudo.
Com Pinochet à frente, vão matar muita gente no dia 11 e também depois, sem dó nem piedade. Os terroristas chegavam ao poder, inconformados com a vitória de Allende em setembro de 1970. Ele chegara pelo voto. Os golpistas, pelas armas, e com gosto de sangue na boca. Calcula-se que os militares tenham causado a morte e desaparecimento de 50 mil pessoas. Um genocídio.
Naquele 11 de setembro, os militares, em sucessivos telefonemas, insistiam para que Allende aceitasse fugir num avião com a família. Allende mantinha-se sereno, apesar do La Moneda sitiado, e dos poucos que o acompanhavam, que com ele quiseram continuar resistindo. Nessas situações-limite, em que as chances de resistência efetiva vão a zero, são poucos os que se dispõem a ir até o fim, e é humanamente compreensível que seja assim. Os aviões faziam um barulho ensurdecedor, sobrevoando o La Moneda.
Ainda pela manhã, Allende, fala por uma emissora de rádio, dizendo não ter características de mártir. “Sou um lutador social que cumpre uma tarefa que o povo me deu”. Mas, sem ter carne de mártir, dirá ele, firmemente, “só sairei do La Moneda quando cumprir o mandato que o povo me deu”. Um claro recado. “Se me assassinam, o povo seguirá sua rota. O processo social não desaparecerá porque desaparece um dirigente”.
Eu me lembro de Hannah Arendt dizendo que a principal virtude de um político é a coragem. Quanta coragem em Allende, que pretendera fazer uma revolução socialista nos marcos da democracia. Poderia ter aceitado o avião, ter ido embora com a família, do exílio tentar influir na luta contra Pinochet, que sai do governo em 1990, com a eleição de Patricio Alwin, e do comando das Forças Armadas somente em 1998.
Mas, não. De modo nenhum aceitava a rendição. O processo social poderá prolongar-se, mas ninguém poderá detê-lo – era mais ou menos o que dizia naquela locução da manhã de 11 de setembro. Conhecia o processo histórico, colocava-se tragicamente no meio dele, conscientemente. Às 9h05, pela Rádio Magallanes, dirige-se ao povo e aos seus verdugos:
“Nestes momentos passam os aviões”. Começava assim a sua fala. Admitia que os adversários pudessem matá-lo, sempre. Antes, na fala anterior, havia dito que contabilizava essa possibilidade. Mas que soubessem que, pelo menos com o exemplo dele, “en este país hay hombres que saben cumplir con la obligación que tienen”. Agia assim em nome do mandato que o povo lhe havia outorgado em eleições livres e democráticas.
E antecipava: “Pagarei com minha vida a defesa dos princípios que são caros a esta pátria”. Quando um general, Ernesto Baeza, voltou a fazer o ultimatum de Pinochet de rendição imediata e a oferta do avião, Allende, do alto de sua dignidade, responde firmemente: “A responsabilidade é de vocês. Passarão à história como assassinos do presidente da República”.
Às 10h15, volta a falar pela Rádio Magallanes, mais demoradamente. “Sempre estarei junto a vocês, ou ao menos, a recordação sobre mim será de um homem digno, de um homem que foi leal”. Forçou então a saída de suas filhas Isabel e Beatriz, das jornalistas que o acompanhavam e de outras mulheres, e de alguns poucos assessores, depois de ter solicitado uma trégua de poucos minutos.
Ao meio-dia, iniciou-se o bombardeio e o ataque cerrado ao La Moneda. Allende foi encontrado morto, sobre dois almofadões, em um sofá vermelho, diante do quadro a óleo de Fray Pedro Subercaseaux, que representava o momento da proclamação da independência do Chile, em 18 de setembro de 1810. Antes que o pegassem, suicidara-se. Dele, a história se lembrará como um precursor da luta pelo socialismo democrático, herói do povo chileno. De Pinochet, como um reles assassino e terrorista.
Artigo publicado na edição de 12/09 do Jornal A Tarde, por Emiliano José, jornalista, escritor, deputado federal (PT/BA).
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